Ramiro Álvarez Ugarte

O movimento pela privacidade sempre disputou a batalha em um terreno difícil, marcado pela vontade dos cidadãos de ceder seus dados em troca de benefícios que são percebidos como sendo úteis. A pandemia da Covid-19 implica um novo desafio que deve ser inserido nessa longa história para ser compreendido plenamente. E, além disso, acredito que esse desafio hoje é maior do que nunca.

Gostaria de começar apresentando o adversário da melhor maneira possível: existe uma tecnologia de vigilância em massa adotada na sociedade, sobre a qual se propõe agregar uma capa adicional para alcançar dois benefícios concretos: reduzir a circulação do vírus e afrouxar as medidas de quarentena de maneira mais eficiente. A promessa é importante e não deveria ser rejeitada rapidamente. Reduzir o número de óbitos e abrandar danos econômicos parecem ser objetivos desejáveis no âmbito de uma situação bastante  assustadora que colocou a todos nós, literalmente, presos em nossas casas.

A nova capa de vigilância proposta pode assumir diferentes formas. Na China, foi instalado um passaporte digital em uma carteira digital amplamente utilizada pelas pessoas que as classifica segundo critérios enigmáticos. Para o ocidente, as grandes empresas prometem soluções mais respeitosas à privacidade dos cidadãos. Enquanto isso, diversos governos estão buscando algum tipo de solução tecnológica para o problema. Todos esses cenários têm seus problemas: os problemas específicos relacionados à América Latina já foram apontados por organizações locais. Neste breve espaço, gostaria de chamar a atenção para uma dimensão estrutural que, no meu ponto de vista, deveria nos nortear no enfrentamento do desafio que se impõe.  Para isso, utilizarei um velho conceito do “mundo da internet”: o conceito de capas ou layers, em inglês.

De fato, acredito que a melhor forma de abordar as novas propostas de vigilância é entendê-las como “uma capa adicional” a ser agregada a uma série de capas adjacentes. A imagem é útil, porque as capas subjacentes definem, em grande medida, o funcionamento da capa superior. Elas determinam o que essa última cada pode realizar e o que nos é solicitado em troca. Dessa forma, por exemplo, a nova capa de vigilância é agregada a uma infraestrutura já existente, sobre situações socioeconômicas específicas, e – de maneira crucial – sobre certos padrões de funcionamento das instituições democráticas, tanto em sua dimensão de tomada de decisões como em termos de mecanismos de prestação de contas.

É sobre essa capa de “governança democrática” que gostaria de me concentrar agora, porque entendo que a nova capa de vigilância oferecida a nós é mais ou menos inevitável, em parte porque já existe: todos os usuários do mundo do Google Maps já cedem seus dados de localização em troca de uma experiência de utilização mais rica e interessante. Quem se recusaria a ceder esses dados para evitar que nossos vizinhos morram? Este foco então nos convoca a uma mudança tática com o objetivo de reduzir os danos ou incidir sobre o processo de tomada de decisões que conduza (ou não) a uma nova capa que incluísse dados sensíveis e a intenção expressa de compartilhá-los, para que outras pessoas e/ou as autoridades sanitárias possam controlar melhor a população durante o período da quarentena.

O primeiro passo nessa direção demanda assumir que, de fato, as tecnologias de vigilância funcionam de uma forma ou de outra de acordo com o funcionamento das capas subjacentes. Assim, por exemplo, um sistema invasivo de vigilância em massa das comunicações pode ser questionável por si só, mas suas consequências serão diferentes se a utilização foi feita por uma ditadura ou uma democracia. Da mesma forma, um sistema de CCTV pode ter consequências diferentes se a autoridade encarregada precisa, por exemplo, prestar contas periodicamente perante uma comissão legislativa de controle ou se tem poder discricionário absoluto de ampliação, utilização e fortalecimento desse sistema.

Então, o segundo passo é analisar e estudar os aspectos da “governança democrática” que determinarão o funcionamento da nova capa de vigilância e atuar sobre eles de maneira direta.

•       A infraestrutura de dados pessoais. Que tipo de proteção existe em nosso país? Ela é eficiente? A norma vigente está atualizada? Como funcionam os órgãos de garantia ou implementação? Em muitos países, as respostas a essas perguntas são desanimadoras, mas também existe uma proteção especial para os dados “sensíveis”. Outra questão que precisamos analisar está relacionada aos mecanismos existentes de prestação de contas. O poder judiciário, por exemplo, poderia exercer um controle eficiente sobre os sistemas de rastreamento de contágios? O que acontece com os poderes legislativos?

•       As abrangências da exceção. É fundamental avaliar em que medida nossas instituições são capazes de criar regimes “de exceção” e respeitar esse caráter excepcional. Em meu país, por exemplo, muitas vezes foram criadas regras para situações excepcionais que foram padronizadas posteriormente. Podemos evitar que isso aconteça? Por outro lado, também é importante prestar atenção aos diferentes instrumentos com os quais podemos limitar a emergência (com base em critérios objetivos como, por exemplo, níveis de contágio, etc.). Nesse sentido, é fundamental analisar os mecanismos constitucionais vigentes que permitem “produzir” legalmente a emergência e os mecanismos para controlá-los.

•       A ciência. Outro foco possível é o alinhamento com a epidemiologia, que sabe que um aplicativo nunca poderia administrar sozinho uma pandemia, uma equação complexa da qual o “rastreamento de contatos” é apenas uma pequena parte. Assim, por exemplo, tudo indica que sem um aumento substancial da capacidade de testes na sociedade, um aplicativo de rastreamento poderia apresentar resultados equivocados (falsos positivos e negativos). Uma abordagem tática típica seria concentrar-se na vulnerabilidade subjacente da proposta que parece mais simples e barata, que aparece como alternativa de ação quando a proposta mais complexa e eficiente é demasiadamente cara.

•       O constitucionalismo. Não há motivos para não exigir a menor intromissão possível frente à utilização de ferramentas tecnológicas. Os argumentos constitucionais que exigem que as medidas restritivas de direitos sejam delimitadas sem perder idoneidade para satisfazer o objetivo almejado podem ajudar nesse sentido. Essa análise de delimitação deve estar associada à quantidade de informações coletadas, às garantias estabelecidas, ao caráter voluntário dos programas de monitoramento, etc. O direito constitucional local deve ser o ponto de apoio dessas estratégias indiretas, inclusive mais ainda do que os padrões internacionais do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, em minha opinião.

•       Transparência. Todas as ações que os governos venham a adotar devem ser transparentes, elaboradas e implementadas perante os cidadãos e com controles políticos, jurídicos e sociais suficientes.  Além disso, é fundamental analisar como agregar, sobre a nova capa de vigilância e sem qualquer custo, uma capa adicional de controle, por exemplo, de trabalho ou de circulação nas vias públicas, sob a responsabilidade do poder público ou de atores privados que exerçam, por exemplo, o direito de admissão.  Assim, se for estabelecido um sistema de passaporte digital, o que impede que um supermercado não exija a apresentação de um certificado no momento da entrada no estabelecimento? Essa possibilidade nos conduz a uma segunda questão vital: os diversos impactos discriminatórios que esse tipo de tecnologias poderiam ter.

Quem trabalha há muito tempo com direitos digitais na América Latina verá que o que foi dito até aqui se parece bastante com uma reedição apressada de velhos desafios. Mas acontece que eles são persistentes: apesar dos esforços e da conscientização dos cidadãos, das mudanças no âmbito jurídico e dos escândalos ocasionais, o avanço das tecnologias invasivas parece estar acelerando. A COVID-19 impõe um cenário ainda mais difícil, que promete aprofundar os modelos vigentes em troca de benefícios concretos. A promessa de quem nos solicita abrir mão de nossa privacidade em troca de algum benefício possível nunca foi tão tentadora. Seria de uma inocência política inaceitável não ver a questão a partir do ponto de vista das lideranças políticas, que enfrentam uma situação inesperada, de impacto ainda incerto, porém massivo. E seria inadequado não ajustar as táticas (e as estratégias) para estar à altura do novo desafio.

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Ramiro é Professor Associado de Direito Constitucional na Universidade de Buenos Aires e de Direito e Mudança Social da Universidade de Palermo (Buenos Aires). Atualmente está cursando um JSD na Escola de Direito da Columbia. Anteriormente, trabalhou como advogado de direitos humanos na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2009-2011) e na Associação pelos Direitos Civis na Argentina (2011-2014), onde desenvolveu a agenda de privacidade. Ramiro tem um LLM pela Escola de Direito da Columbia (2009), onde foi bolsista Harlan Fiske Stone e Fulbright