Por DATYSOC

O Uruguai está prestes a construir uma base de dados de «Identificação Facial» para fins de segurança pública sob a liderança do Ministério do Interior. Esse sistema foi aprovado utilizando a Lei de Orçamento Nacional como uma espécie de “lei guarda-chuva”, evitando assim a devida discussão do tema, pois esse tipo de lei tem prazos curtos para aprovação.

A construção dessa base de dados está sob a responsabilidade do Ministério do Interior, utilizando a base de dados que atualmente se encontra a cargo da Diretoria Nacional de Identificação Civil, órgão encarregado de emitir as carteiras de identidade no país. A base de dados incluirá: imagens faciais de pessoas maiores de idade, nomes e sobrenomes, sexo, data de nascimento, nacionalidade, número da carteira de identidade, além de sua data de emissão e data de expiração.  O Ministério do Interior já contratou um software de reconhecimento facial automatizado e conta atualmente com um sistema de 8.433 câmeras distribuídas nos 19 estados do país, além dos sistemas de vigilância privada. O governo federal admitiu que pretendem utilizar essa base de dados de identificação facial para a vigilância automatizada por meio de algoritmos de reconhecimento facial.

Dessa forma, é especialmente preocupante a ampla discricionariedade outorgada ao Ministério do Interior sobre os possíveis usos dessa base de dados de identificação fácil, visto que inclui qualquer tipo de uso para fins de segurança pública indicado na Lei Orgânica Policial.  O conceito de “segurança pública” é tão amplo que não define os limites para as autoridades públicas no uso de dados pessoais.

O que pode dar errado?  

Vários estudos recentes [1], [2], [3] advertem que a maioria dos sistemas de reconhecimento facial comerciais apresentam distorções significativas e demonstram ser tecnologias ainda imaturas. A tecnologia de reconhecimento facial com distorções é particularmente problemática para usos relacionados à segurança pública, porque os erros poderiam resultar em falsas acusações e prisões injustificadas.

Posto isso, suponhamos que os algoritmos de reconhecimento facial funcionem corretamente e que a base de dados seja corretamente administrada do ponto de vista técnico pelo Ministério do Interior. Isso significaria que os sistemas de vigilância do governo poderiam identificar toda e qualquer pessoa perfeitamente. Neste caso, a pergunta é: queremos realmente chegar a esse ponto?

O uso dessa tecnologia implica grandes riscos; ela pode ser utilizada para encontrar e prender manifestantes ou organizações de protestos ou pode ser usada para rastrear pessoas a distância sem que elas saibam que estão sendo rastreadas, entre outros usos preocupantes. Além disso, viver em uma sociedade vigiada afeta a privacidade das pessoas e pode afetar também a liberdade de expressão, de movimento e de reunião, de formas ainda inimagináveis. Como a identificação facial afetará o comportamento dos uruguaios? Foram realizadas análises de impacto sobre as possíveis consequências sociais do uso da biometria no espaço público? Esse uso é necessário e proporcional?

Enquanto no Uruguai o tema está incluído em uma Lei Orçamentária (lei guarda-chuva) e sem discussão pública, em outros países os legisladores estão propondo e inclusive aprovando leis proibindo o uso de reconhecimento fácil por parte do governo para vigiar os cidadãos [1] [2] [3] [4] [5] [6], incluindo a proibição do uso de outras tecnologias biométricas como reconhecimento de voz, reconhecimento do andar e reconhecimento de outras características físicas imutáveis.  Várias organizações que trabalham em temas de direitos humanos e tecnologia na América Latina estão trazendo a público os casos problemáticos de uso de reconhecimento facial e alertando sobre os riscos que essa tecnologia representa para a população.

Além disso, é importante destacar que os organismos internacionais de direitos humanos alertam sobre os potenciais perigos de abuso e recomendam que os países façam a regulamentação por lei analisando o alcance detalhado de seu uso, a necessidade e proporcionalidade. Nesse sentido, durante o ano de 2020, decidiram estabelecer moratórias na oferta de suas soluções de reconhecimento facial automatizado aos governos solicitando que seu uso seja regulamentado pela via parlamentar.  

Alerta da sociedade civil

No dia 13 de outubro de 2020, os dois artigos em questão foram aprovados pela Câmara de Representantes (deputados) sem qualquer tipo de debate. Quando a Lei Orçamentária foi enviada ao Senado para ser analisada (durante os meses de outubro e novembro), a equipe da DATYSOC alertou sobre os potenciais perigos gerados pelo uso de identificação facial automatizada para fins de segurança pública e sobre o excesso de discricionaridade que será outorgado ao Ministério do Interior, conseguindo assim posicionar o tema na agenda dos meios de comunicação [1] [2] [3] [4] [5] [6] [7]. Nós da DATYSOC e mais de 20 organizações do Uruguai e da região enviamos uma carta ao Senado do Uruguai pedindo que os dois artigos fossem retirados do projeto de Lei Orçamentária.

A partir dos alertas dados pela sociedade civil, vários senadores se posicionaram a favor da retirada desses artigos ou solicitaram a inclusão do requisito de ordem judicial prévia para habilitar o uso desses dados de identificação facial para fins de segurança pública. Infelizmente, devido à escassez de tempo para discussão que caracteriza o processo de aprovação de uma Lei Orçamentária, não se chegou a um acordo. Os dois artigos que fornecem um “passe livre” ao Ministério do Interior foram aprovados sem modificações pela Câmera e pelo Senado, evitando que o assunto fosse discutido profundamente pelos parlamentares como se faz necessário neste caso.

Nossa estratégia

Esgotadas as possibilidades de incidir no processo de discussão parlamentar da Lei Orçamentária e buscando possíveis caminhos para evitar danos maiores, nós na DATYSOC decidimos promover a inclusão desse tema no 5º  Plano de Ação de Governo Aberto 2021-2025. Nosso objetivo é gerar um compromisso por parte do Ministério do Interior que permita, pelo menos, a possibilidade de um debate informado com participação de diversas partes interessadas antes da regulamentação.

Além disso, vamos analisar de perto o impacto dessas medidas nos direitos humanos, buscando a maior transparência possível no processo e em sua implementação de modo a manter a população informada.

Saiba mais sobre o tema