Por Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor

Construir pontes leva tempo, é cansativo e custa caro – mas compensa. Esse é um dos inúmeros aprendizados que carregaremos no Idec após quase dois anos do projeto “Construindo pontes entre as comunidades de direitos digitais e defesa dos consumidores na América Latina”.

A ideia para esta iniciativa nasceu do nosso grande envolvimento nestas duas comunidades – a de direitos digitais e a de defesa dos consumidores. Isso porque, com o tempo, nos demos conta de que são duas comunidades com muitos pontos fortes, mas que ainda não dialogam entre si. De um lado, temos a comunidade de direitos digitais, que está super atenta ao processo de digitalização dos serviços públicos e privados e possui uma articulação regional bem estabelecida. Do outro lado, temos organizações de proteção ao consumidor, que vêm trabalhando desde os anos 80 e 90, atuando de diferentes maneiras, seja em incidência política, campanhas de conscientização ou litígios estratégicos, mas que, por enquanto, conhecem pouco sobre essas novas questões de privacidade e proteção de dados.

Construindo pontes durante a pandemia

Estreitar laços entre grupos que não são parecidos é uma tarefa ainda mais complicada em um período pandêmico, como foi o nosso caso. Dessa maneira, tivemos que abrir mão de um grande encontro presencial e latino-americano, o que nos forçou a procurar alternativas viáveis para esse desafio de construção de pontes.

Assim, começamos nosso projeto com uma série de entrevistas remotas com membros de organizações de direitos digitais e com representantes de organizações de defesa do consumidor de doze países da região, do México ao Chile. A partir dessa etapa inicial, foi possível coletar uma considerável quantidade de dados e informações que nos ajudaram a traçar um importante perfil das duas comunidades.

Uma rápida análise comparativa entre as duas comunidades nos apontou um grande hiato geracional e uma disparidade financeira significativa. Por exemplo, a liderança da comunidade de defesa do consumidor é predominantemente formada por mulheres, que fundaram as organizações e trabalham há décadas nelas, onde também ajudaram na promulgação das leis nacionais de defesa do consumidor – como foi o caso do próprio Idec. Enquanto isso, na comunidade de direitos digitais, percebe-se a presença de membros mais jovens e que também fundaram suas próprias organizações, onde trabalham há menos de uma década.

Em nossas conversas com os ativistas de ambas comunidades, decidimos investigar como as entidades se relacionam com os debates sobre tecnologia e sociedade. Essa foi uma importante etapa para dar atenção ao complexo cenário regulatório da região, onde há países onde a proteção de dados já é um direito fundamental, enquanto outros sequer possuem regramentos para lidar com tratamento de dados. Outros temas como direito concorrencial e serviços de telecomunicações também surgiram nas conversas como tópicos de interesse das organizações, uma vez que as discussões sobre tratamentos massivos de dados já não são uma mera questão de proteção de dados e privacidade.

Posto que um dos objetivos iniciais de nosso projeto também era mapear marcos regulatórios nacionais e casos paradigmáticos, construímos, no âmbito do projeto, um   interativo contendo informações sobre autoridades e legislações de vários países sobre proteção de dados, defesa do consumidor, direito concorrencial e direito das telecomunicações. Acreditamos que esse atlas jurídico, aliado a uma biblioteca de casos paradigmáticos locais, será um privilegiado espaço que irá propiciar uma importante difusão de conhecimento sobre a interface entre direito do consumidor e proteção de dados na América Latina.

Arregaçando as mangas

Para além dessa enorme etapa de coleta de dados, também atuamos, na prática, com ações de incidência política. Já tendo apresentado o nosso projeto para as organizações da região, bem como conversado detidamente com elas, tivemos uma primeira oportunidade de articulação quando o WhatsApp, o aplicativo de mensagens mais usado na América Latina e no mundo, começou a enviar notificações, no início de janeiro de 2021, sobre mudanças que seriam implementadas em seus termos de uso e política de privacidade. Nesse sentido, diversas organizações, de ambas as comunidades, assinaram uma manifestação pública endereçada ao Facebook e às autoridades locais solicitando uma série de medidas sobre a nova política de privacidade do WhatsApp para que as pessoas usuárias tivessem seus direitos respeitados.

No final deste mesmo ano, organizamos um evento para estabelecer um diálogo entre a sociedade civil latinoamericana, onde debatemos uma perspectiva de proteção de dados que articulou as experiências, o trabalho e os conhecimentos das comunidades de direitos digitais e de defesa do consumidor da América Latina. Neste espaço, tivemos a oportunidade de abordar a propagação de tecnologias biométricas e seus efeitos sobre os consumidores e também discutir sobre a proteção de dados pessoais dos usuários de serviços de telecomunicações.

Não estamos sós

Outros interessantes momentos de articulação do projeto surgiram quando fomos descobrindo iniciativas semelhantes pelo mundo afora. Percebemos que outras organizações também estavam atentas para o fato de que uma colaboração mais robusta entre diferentes grupos é urgentemente necessária para lidar com o avanço de serviços públicos e privados que violam o direito à proteção de dados dos cidadãos.

Por exemplo, em 2021, a The Engine Room conduziu um projeto de pesquisa explorando a colaboração intersetorial entre comunidades de justiça social e comunidades de direitos digitais durante a pandemia. Demos uma série de contribuições ao relatório final da referida pesquisa, compartilhando as experiências e aprendizados que tivemos ao longo de nosso próprio projeto. Também estreitamos laços com o projeto “Advocating for Data Accountability, Protection, and Transparency” (ADAPT) da Internews, o que nos ajudou focar nos desafios enfrentados pelos reguladores latino-americanos, além de nos proporcionar espaços para discutirmos sobre como ativistas podem trabalhar não apenas com autoridades de proteção de dados, mas também com órgãos reguladores de concorrência e de direitos do consumidor.

Vamos juntos

Após todas essas estimulantes ações, conversas e parcerias, percebemos que ainda há um grande caminho pela frente a ser percorrido. As assimetrias financeiras, geracionais e técnicas ainda são marcantes e dificultam um envolvimento contínuo entre as comunidades. Após a dolorosa primeira etapa da pandemia, tanto os direitos digitais quanto os direitos do consumidor são áreas que estão recebendo mais atenção dos cidadãos devido à migração dos serviços públicos, do trabalho e da educação para o ambiente digital, assim, estamos confiantes que estes primeiros passos executados em nosso projeto serão essenciais para construir pontes mais sólidas e duradouras, que irão desembocar em ações concretas e exitosas, como já está acontecendo.